Há uns dias atrás, sem querer, acabei no campo. Sim, campo... árvores, terra, ar livre... Tinha planeada uma tarde com folhas de excel à frente e uma reunião. Reunião cancelada, restavam as folhas de excel. Uma fantástica tarde de sol, sem frio, após um belo "repasto" bem regado e ainda por cima sem ter que conduzir: ó que maravilha! Convite aceite! 'Bora lá! Excel adiado!
A meio da viagem, abre-se uma janela e entra no carro um cheiro delicioso de eucalipto, pinheiro, urze, giestas, folhas, ervas, terra... aquela mistura de cheiros impossível de descrever, mas que nos fica na memória e que nos traz memórias. Chegados ao destino, o cheiro mantém-se, entra nos pulmões, entranha-se nos poros...
Os cheiros, a vista, o sol, o calor que anuncia os dias de primavera, trazem-me à memória os tempos de miúda, passados nas quintas do meu pai. Os dias da matança do porco, os dias da vindima, da poda, os fins de tarde da ordenha... Na viagem de regresso e quando voltei às folhas de Excel, fartei-me de "viajar"!
Voltei à matança do porco, às conversas das caseiras que insistiam que o me fazia falta era comer o caldo de cozer as carnes e o sangue, que dava "sustança": "- Tão franzina esta menina! Precisa de a mandar para cá, Sr. Dr.! Este caldo e os ares, sai daqui outra, cheiinha, coradinha..." E eu comia o caldo de muito bom grado. Era bom!
De volta às tardes na Quinta da Forca, cá em baixo, na casa do forno, com a broa a acabar de sair, recheada com sardinha. O lanche melhorado dos trabalhadores, quando o meu pai lá ia! Ai, aquela broa: aquele pedaço debaixo da sardinha, quente, gorduroso, a desfazer-se na boca, ensopado com o sabor da sardinha... a broa de chouriço... até a broa simples, sem nada, digna da mesa de um rei! Muita broa quente comi eu: "- Deixe a menina comer, é o que ela precisa! Olhe, se não jantar, "quem não come por ter comido, não há mal de perigo"! Coma menina, faz-lhe bem, p'ra encher esses ossinhos..." Ah, e eu comia!
Aquela mistura de cheiros, a terra, fizeram-me regressar à ordenha, aos finais de tarde onde eu escapava aos olhos do meu pai, corria atrás do caseiro e ia beber o leite... não num copo, assim não tinha piada! O que eu gostava mesmo era de meter a cabeça debaixo da vaca, esperar que o caseiro apertasse as tetas da vaca e... directo para a minha boca! Sempre às escondidas do meu pai: (então da minha mãe nem se fala, tal era o pânico de eu levar um coice da vaca) "- Ai, Sr. Dr., a menina é só olhos e cabelo... deixe lá, "o que não mata engorda!" Pois é, não existe leite melhor!
É, tenho maus hábitos! Almoços do fim da vindima, com os leitões a saírem do forno, a cabidela feita a preceito, as mesas corridas com todos os trabalhadores... A cabidela! Ninguém a fazia tão bem como o Victor, o caseiro de S. Lourenço. Qual batata frita! Era mesmo com batata cozida e salada. E vinho claro, para os adultos. Eu ficava-me pelo mosto, ainda a ser pisado pelo pessoal: "- Dê um copo à menina, Sr. Dr.... olhe que é melhor que os xaropes da farmácia! Tão branquinha, coitadinha... isto é que lhe faz falta!" E o meu pai dava. Eu gostava e ele tinha orgulho de eu gostar.
Fica outro tanto por contar: a lama, a cara mascarrada de uvas, as mãos sujas de terra, o cabelo ainda mais espetado do pó das correrias, o barro colado na roupa e nos braços, as pernas cheia de nódoas negras, arranhões e esfoladelas (tenho orgulhosas cicatrizes das minhas brincadeiras), os sonos feito no banco ao lado da lareira, na Quinta do Ribeirinho, as fabulosas tartes de chila da D. Maria Teresa...
De nada serviram os cuidados e as comidas das caseiras. Nem o leite puro, nem o mosto... Continuei franzina, magrinha, só olhos e cabelo, branquinha, mas com um apetite que só visto! Sim, sou "menina da cidade" mas com um pézinho no campo e com muita pena pelo meu filho não crescer com tudo isto.
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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
quarta-feira, 24 de março de 2010
História das histórias
Há uns anos atrás, um dos meus chefes dizia -me: - "Escreve! Escreve essas histórias todas! Não deixes que elas se percam com o passar dos anos! Olha, não sejas preguiçosa, escreve!" Um homem extraordinário, esse meu Chefe. Ainda hoje tenho por ele um carinho e uma admiração enormes. Um homem único. Tenho saudades desses momentos de "partilha" que nós os dois tínhamos! Passei momentos extraordinários com ele. Ensinou-me muita coisa...
Ficávamos horas a conversar os dois, depois das reuniões. Eu, que adoro uma boa conversa, ele que adora histórias! Desde o meu bisavô maçónico, às historias de como o meu pai conquistou a minha mãe, passando pelos "desastres" das jóias da minha avó, o naufrágio dos lugres, acho que lhas contei todas. E ele insistia, no fim de cada "ronda": - Escreve! Senta-te ao computador e escreve! Ou faz como antigamente, pega em papel e caneta! Mas escreve! Não deixes que essas histórias se percam..."
Sempre lhe disse que ia pensar nisso, mas escrever para quê? Para ficar armazenado no disco duro? Para imprimir e deixar as folhas amarelecer com o tempo? Não fazia sentido...
Quando criei este blogue, não me passou sequer pela cabeça contar estas histórias. No fundo são minhas e não são minhas. São património da minha família, são a história da minha família. Só fiz parte de algumas (poucas) e nem sequer são as que têm mais piada. Não me sentia no direito de as contar, de as escrever. Até porque, de algumas só sei pedaços e já não tenho a quem recorrer para preencher as lacunas. Mas, aos poucos elas (as histórias!) foram saindo do armário, devagar, devagarinho, foram espreitando... e acabaram por sair cá para fora!
Começou pela minha Avó emprestada (e muito bem, porque se estou aqui também lho devo a ela e ao carinho com que me ajudou a crescer), passando pelo meu pai (o meu ídolo!), pelo meu bisavô revolucionário... enfim, estou a fazer o que o meu Chefe queria: a escreve-las! De uma forma aleatória, anárquica, desordenada, misturadas com as minhas neuras, com os meus "recados", com os meus desabafos, com as crises de mau feitio; enfiadas entre postes de frustração, de raiva, de carinho, de amor, de nervos, de ansiedade, de abandono; encravadas entre os meus dias de "normalidade" (será que isso existe?) e os meus dias de "bipolaridade" (quem não os têm, que atire a primeira pedra!), elas vão passando para aqui, quase com vontade própria. Nunca sei quando me saltam da ponta dos dedos! Pode ser por causa de uma data, de uma foto, de um nome, de uma brutal neura, ou muito simplesmente por que me apeteceu!
E sabem que mais? Tem sido muito bom escreve-las! O meu Chefe tinha razão!
Ficávamos horas a conversar os dois, depois das reuniões. Eu, que adoro uma boa conversa, ele que adora histórias! Desde o meu bisavô maçónico, às historias de como o meu pai conquistou a minha mãe, passando pelos "desastres" das jóias da minha avó, o naufrágio dos lugres, acho que lhas contei todas. E ele insistia, no fim de cada "ronda": - Escreve! Senta-te ao computador e escreve! Ou faz como antigamente, pega em papel e caneta! Mas escreve! Não deixes que essas histórias se percam..."
Sempre lhe disse que ia pensar nisso, mas escrever para quê? Para ficar armazenado no disco duro? Para imprimir e deixar as folhas amarelecer com o tempo? Não fazia sentido...
Quando criei este blogue, não me passou sequer pela cabeça contar estas histórias. No fundo são minhas e não são minhas. São património da minha família, são a história da minha família. Só fiz parte de algumas (poucas) e nem sequer são as que têm mais piada. Não me sentia no direito de as contar, de as escrever. Até porque, de algumas só sei pedaços e já não tenho a quem recorrer para preencher as lacunas. Mas, aos poucos elas (as histórias!) foram saindo do armário, devagar, devagarinho, foram espreitando... e acabaram por sair cá para fora!
Começou pela minha Avó emprestada (e muito bem, porque se estou aqui também lho devo a ela e ao carinho com que me ajudou a crescer), passando pelo meu pai (o meu ídolo!), pelo meu bisavô revolucionário... enfim, estou a fazer o que o meu Chefe queria: a escreve-las! De uma forma aleatória, anárquica, desordenada, misturadas com as minhas neuras, com os meus "recados", com os meus desabafos, com as crises de mau feitio; enfiadas entre postes de frustração, de raiva, de carinho, de amor, de nervos, de ansiedade, de abandono; encravadas entre os meus dias de "normalidade" (será que isso existe?) e os meus dias de "bipolaridade" (quem não os têm, que atire a primeira pedra!), elas vão passando para aqui, quase com vontade própria. Nunca sei quando me saltam da ponta dos dedos! Pode ser por causa de uma data, de uma foto, de um nome, de uma brutal neura, ou muito simplesmente por que me apeteceu!
E sabem que mais? Tem sido muito bom escreve-las! O meu Chefe tinha razão!
terça-feira, 27 de outubro de 2009
Porquê...
Há uns dias, dei boleia a um dos meus amigos. No meu carro estava a tocar um CD dos Xutos. Nem sei que álbum era. Era Xutos!
O meu amigo resmungou, queixando-se da minha falta de originalidade e também do meu gosto. Dizia ele, com alguma razão, que andou muitos anos a ensinar-me a gostar de música "decente", para eu andar sempre a ouvir Xutos. Dei-lhe razão!
Tirei o CD e, só para o irritar, pus na RFM!
O porquê dos Xutos? É simples: um homem!
Um homem que foi muito importante na minha vida. Acho que ele só percebeu a importância que tinha tido para mim, algum tempo depois de eu acabar a nossa relação. E digo relação, porque tinha (e continuo a ter) alergia à palavra "namorado". É um rótulo, traz sempre "obrigações", coisas que nem sempre queremos, mas que estão coladas ao conceito e que, muito dificilmente, conseguimos destacar. Quando anos mais tarde ele, num programa de televisão, se referiu à minha pessoa como sua "namorada", fiquei "a ponto" de o matar! Pior, estive quase para pegar no telemóvel e ligar a desancá-lo pela audácia! Eu, que não lhe falo!
Como quase toda a gente da minha geração, eu gostava dos Xutos. De uma forma normal. Tinha umas músicas "fixes"! Gostava, como gostava de muitas outras coisas.
Ele era um "viciado" nos Xutos! Do tipo de saber os álbuns de cor, as letras, os alinhamentos de todos os concertos, quando tinham sido os concertos, onde iam ser os próximos concertos...
Quando começámos a nossa relação, começou a minha relação "íntima" com os Xutos. É, íntima, porque os Xutos estavam sempre connosco! No meu quarto sempre houve uma aparelhagem. Ele sabia! E trazia os cd's dos Xutos que eu não tinha. Primeiro estranhei! Depois gostei!
Ele ensinou-me a ouvir. Sentados no chão, de pernas cruzadas, colados às colunas (quase sempre noite, quase sempre de madrugada!) com a música muito baixo, ele pacientemente (eu sou dura de ouvido) dizia-me: "ouviste? 'Pera, vou andar para trás! Ouviste agora?" Se das primeiras vezes só o via e ouvia a ele, com o tempo também comecei a ouvir e entender as letras dos Xutos. De tal forma que, a música que ouço quando estou no fundo do poço e preciso de sair de lá, é dos Xutos. (Não, não está no blogue!)
Foi depois de um concerto (dos muitos que vimos) dos Xutos que ele, já farto do secretismo da nossa relação, me "espetou" um valente beijo, à frente de todos os nossos amigos! E depois foi para os "copos", deixando-me sózinha para explicar... sendo certo que não expliquei nada a ninguém! Era o que mais faltava! Sempre fiz o que quis, sem dar satisfações aos outros! Mas desenganem-se: nunca vimos um concerto ao lado um do outro. Ele na frente, quase em cima do palco e eu lá atrás, com os amigos!
Há músicas do Xutos que são a cara dele, assim como há músicas que vou ligar para sempre à relação que tivemos. Uma delas devolvi-lha aqui no blogue. Foi apenas um acto simbólico, mas soube bem! Sim, porque os Xutos já existem para além dele... Já tenho uns Xutos só meus! E de mais ninguém!
Obrigado ---, por me teres ensinado a gostar!
(Quem consegue preencher os três espacinhos, que se cale!)
O meu amigo resmungou, queixando-se da minha falta de originalidade e também do meu gosto. Dizia ele, com alguma razão, que andou muitos anos a ensinar-me a gostar de música "decente", para eu andar sempre a ouvir Xutos. Dei-lhe razão!
Tirei o CD e, só para o irritar, pus na RFM!
O porquê dos Xutos? É simples: um homem!
Um homem que foi muito importante na minha vida. Acho que ele só percebeu a importância que tinha tido para mim, algum tempo depois de eu acabar a nossa relação. E digo relação, porque tinha (e continuo a ter) alergia à palavra "namorado". É um rótulo, traz sempre "obrigações", coisas que nem sempre queremos, mas que estão coladas ao conceito e que, muito dificilmente, conseguimos destacar. Quando anos mais tarde ele, num programa de televisão, se referiu à minha pessoa como sua "namorada", fiquei "a ponto" de o matar! Pior, estive quase para pegar no telemóvel e ligar a desancá-lo pela audácia! Eu, que não lhe falo!
Como quase toda a gente da minha geração, eu gostava dos Xutos. De uma forma normal. Tinha umas músicas "fixes"! Gostava, como gostava de muitas outras coisas.
Ele era um "viciado" nos Xutos! Do tipo de saber os álbuns de cor, as letras, os alinhamentos de todos os concertos, quando tinham sido os concertos, onde iam ser os próximos concertos...
Quando começámos a nossa relação, começou a minha relação "íntima" com os Xutos. É, íntima, porque os Xutos estavam sempre connosco! No meu quarto sempre houve uma aparelhagem. Ele sabia! E trazia os cd's dos Xutos que eu não tinha. Primeiro estranhei! Depois gostei!
Ele ensinou-me a ouvir. Sentados no chão, de pernas cruzadas, colados às colunas (quase sempre noite, quase sempre de madrugada!) com a música muito baixo, ele pacientemente (eu sou dura de ouvido) dizia-me: "ouviste? 'Pera, vou andar para trás! Ouviste agora?" Se das primeiras vezes só o via e ouvia a ele, com o tempo também comecei a ouvir e entender as letras dos Xutos. De tal forma que, a música que ouço quando estou no fundo do poço e preciso de sair de lá, é dos Xutos. (Não, não está no blogue!)
Foi depois de um concerto (dos muitos que vimos) dos Xutos que ele, já farto do secretismo da nossa relação, me "espetou" um valente beijo, à frente de todos os nossos amigos! E depois foi para os "copos", deixando-me sózinha para explicar... sendo certo que não expliquei nada a ninguém! Era o que mais faltava! Sempre fiz o que quis, sem dar satisfações aos outros! Mas desenganem-se: nunca vimos um concerto ao lado um do outro. Ele na frente, quase em cima do palco e eu lá atrás, com os amigos!
Há músicas do Xutos que são a cara dele, assim como há músicas que vou ligar para sempre à relação que tivemos. Uma delas devolvi-lha aqui no blogue. Foi apenas um acto simbólico, mas soube bem! Sim, porque os Xutos já existem para além dele... Já tenho uns Xutos só meus! E de mais ninguém!
Obrigado ---, por me teres ensinado a gostar!
(Quem consegue preencher os três espacinhos, que se cale!)
domingo, 20 de setembro de 2009
Mulher de Fibra II
Parei na decisão que o meu pai tomou em manter a minha avó a tomar conta de mim.
O "casarão" do Sr. Dr. tinha uma casa dos caseiros, em parte do rés do chão. Foi onde os meus pais viveram até as obras de restauro de cima, estarem concluídas. As duas cozinhas eram por baixo uma da outra, partilhando a mesma chaminé. E este detalhe é de extrema importância! A casa dos caseiros tinha um pátio pequeno, nas traseiras da casa, com um portão de madeira verde a separar o quintal do casarão. Passando esse portão tinha-se acesso à escadaria de pedra, que levava à entrada da cozinha do "casarão".
Por esta altura já a menina tratava a senhora por AVÓ. O Sr. Dr. tinha a firme convicção de que todas as pessoas deviam ser respeitadas e tratadas com dignidade. Tinha que arranjar um título que fosse de respeito para a menina tratar a "ama" ocasional. Lembrou-se de avó que carrega, para além de respeito, carinho, mimos, afectos, doces, colo...se calhar um pouco da imagem que ele tinha das suas próprias avós. E assim nasceu a minha avó! Que se tornou "avó " de várias crianças, pois com as mudanças proporcionadas pelo Sr. Dr., a sua vida ficou diferente.
Quando se concluíram as obras de restauro do "casarão" (cerca de 20 anos depois do seu início!), a casa do caseiro ficou vazia, com a mudança da família par o 1º andar. O Sr. Dr. chamou a avó à sua biblioteca (onde recebia toda a gente! Foi das poucas divisões que se mantiveram funcionais ao longo dos 20 anos de restauro do "casarão".) e perguntou-lhe:
- Olhe lá, ó A. quanto é que está a pagar de renda na casa onde está?
- Mil escudos, Sr. Dr..
- A A. quer mudar para a casa pequenina?
- Ai, Sr. Dr. não tenho dinheiro para lhe pagar a renda!
- Fica a pagar o mesmo que está a pagar agora!
Se eu fechar os olhos consigo, sem esforço, ver os dois a ter esta conversa, tantas e tantas vezes contada pela minha avó, com as lágrimas nos olhos: o meu pai, na cabeceira da longa mesa de pau preto, rodeado de pilhas de livros e papeis manuscritos, com os óculos a escorregarem pelo nariz, as duas mãos assentes na mesa; e a minha avó, na outra ponta da mesa, de pé, com o seu longo cabelo, todo entrançado e enrolado em caracol, bata vestida (que usou a vida toda) e avental por cima.
A mudança foi rápida: a minha avó agarrou a oportunidade com ambas as mãos, fechou a taberna, mudou de casa e de vida! Esperava ela que, sem a taberna o vício do marido se fosse, mas não... Abrandou muito, mas a sua vergonha continuou. Na casa nova, com condições e espaço e com a referência de tomar conta da filha do Sr. Dr., rapidamente arranjou outros meninos para tomar conta, mais netos "emprestados".
A vida da menina passou a ser escada acima, escada abaixo, a comer bacalhau de primeira na casa de cima e tripas de vinha d'alhos, na cozinha de baixo!
Até aqui nada de extraordinário. A grande ligação afectiva à minha avó está para começar. O porquê de eu lhe chamar o meu "porto seguro" fica para outra vez.
O "casarão" do Sr. Dr. tinha uma casa dos caseiros, em parte do rés do chão. Foi onde os meus pais viveram até as obras de restauro de cima, estarem concluídas. As duas cozinhas eram por baixo uma da outra, partilhando a mesma chaminé. E este detalhe é de extrema importância! A casa dos caseiros tinha um pátio pequeno, nas traseiras da casa, com um portão de madeira verde a separar o quintal do casarão. Passando esse portão tinha-se acesso à escadaria de pedra, que levava à entrada da cozinha do "casarão".
Por esta altura já a menina tratava a senhora por AVÓ. O Sr. Dr. tinha a firme convicção de que todas as pessoas deviam ser respeitadas e tratadas com dignidade. Tinha que arranjar um título que fosse de respeito para a menina tratar a "ama" ocasional. Lembrou-se de avó que carrega, para além de respeito, carinho, mimos, afectos, doces, colo...se calhar um pouco da imagem que ele tinha das suas próprias avós. E assim nasceu a minha avó! Que se tornou "avó " de várias crianças, pois com as mudanças proporcionadas pelo Sr. Dr., a sua vida ficou diferente.
Quando se concluíram as obras de restauro do "casarão" (cerca de 20 anos depois do seu início!), a casa do caseiro ficou vazia, com a mudança da família par o 1º andar. O Sr. Dr. chamou a avó à sua biblioteca (onde recebia toda a gente! Foi das poucas divisões que se mantiveram funcionais ao longo dos 20 anos de restauro do "casarão".) e perguntou-lhe:
- Olhe lá, ó A. quanto é que está a pagar de renda na casa onde está?
- Mil escudos, Sr. Dr..
- A A. quer mudar para a casa pequenina?
- Ai, Sr. Dr. não tenho dinheiro para lhe pagar a renda!
- Fica a pagar o mesmo que está a pagar agora!
Se eu fechar os olhos consigo, sem esforço, ver os dois a ter esta conversa, tantas e tantas vezes contada pela minha avó, com as lágrimas nos olhos: o meu pai, na cabeceira da longa mesa de pau preto, rodeado de pilhas de livros e papeis manuscritos, com os óculos a escorregarem pelo nariz, as duas mãos assentes na mesa; e a minha avó, na outra ponta da mesa, de pé, com o seu longo cabelo, todo entrançado e enrolado em caracol, bata vestida (que usou a vida toda) e avental por cima.
A mudança foi rápida: a minha avó agarrou a oportunidade com ambas as mãos, fechou a taberna, mudou de casa e de vida! Esperava ela que, sem a taberna o vício do marido se fosse, mas não... Abrandou muito, mas a sua vergonha continuou. Na casa nova, com condições e espaço e com a referência de tomar conta da filha do Sr. Dr., rapidamente arranjou outros meninos para tomar conta, mais netos "emprestados".
A vida da menina passou a ser escada acima, escada abaixo, a comer bacalhau de primeira na casa de cima e tripas de vinha d'alhos, na cozinha de baixo!
Até aqui nada de extraordinário. A grande ligação afectiva à minha avó está para começar. O porquê de eu lhe chamar o meu "porto seguro" fica para outra vez.
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
Mulher de Fibra I
Este "bloguinho de notas" foi criado para preservar muitas das histórias que se vão passando na minha vida. E a minha vida não é só presente. É também passado, muito passado. Algum muito bom, mesmo muito bom e outro menos bom.
Para ser o que sou hoje, tive na minha vida pessoas muito importantes que, não só me ensinaram muito do que sei hoje, como também me serviram (e servem!) de exemplo. E que tantas, mas tantas vezes me servem também de guia!
Eu não entendo alguns dos medos da clonagem! Jamais conseguirão fazer alguém igual a mim. Ou a qualquer um de nós! Pode ter o mesmo cabelo, os mesmos olhos, a boca, as mãos, mas... não vai viver o que nós já vivemos, nem sentir o que sentimos. O barulho do vento é igual, o som do oceano também, morangos sabem a morangos, mas ... e o som da voz da Avó!? O toque das mãos dela?! O tom de voz que usava para ralhar connosco?! E para nos mimar?! E as histórias que inventava para tomarmos o remédio?!
Pois é, também tinham que fazer um clone dela! Que também não seria igual!
É isso mesmo, vou falar da minha AVÓ!
Que não era minha avó de sangue, mas eu amava-a mais ainda por isso: ela escolheu-me para sua neta e eu escolhia para minha avó. Quando fizemos esta escolha não sabíamos que ia ser para a vida toda. Eu era a filha do Sr. Dr., que morava no "casarão" do lado, e ela era a mulher de um tipógrafo, que tinha uma "taberna" mesmo ao lado da casa do Sr. Dr.. E era preciso que alguém ficasse com a menina, de vez em quando. A avó do lado da mãe já tinha morrido, e a avó do lado do pai, tinha na altura, 90 anos. E claro, que as criadas da Senhora não estavam para "aturar" a menina. Sem perceber muito bem como (já não lhe posso perguntar) foi parar lá a casa.
É engraçado, porque me lembro da casa: rés do chão, onde era a taberna, um longo corredor que dava acesso ao pátio de trás e o 1º andar, que era a habitação. E a minha avó, com três filhos a crescer, tratava da "taberna", da casa, dos filhos e de mim! Sim, porque o marido estava a trabalhar o dia todo, só vinha à noite e gostava muito de beber. Esclareço já: tinha "bom vinho", ou seja, quando bebia não aborrecia ninguém. Só a minha avó é que ficava cheia de vergonha.
Sempre que os meus pais tinham que sair, eu ficava lá em casa. Havia uma cancela, no fim do corredor do 1º andar para a menina não cair pelas escadas.
E eu gostava muito dela, e gostava de lá ficar em casa.
E a menina cresceu, começou a perceber o mundo que a rodeava e o Pai achou que não era sítio para ter a menina. Afinal era uma taberna e ela era filha do Sr. Dr.. Não que isso lhe importasse muito, a história da "separação das classes" provocava-lhe grandes acessos de fúria! Eu tive o privilégio de assistir a alguns! Talvez por esta sua faceta, o Sr. Dr. decidiu que aquela senhora era a ideal para continuar a tomar conta da menina, sempre que fosse preciso.
Abençoada decisão do meu pai!
E vamos ficar por aqui. É que enquanto estive a escrever, na minha cara rolaram sem parar, umas lágrimas enormes, gordas, que me caiem em cima do teclado, enevoam-me a visão e me atrapalham. São lágrimas de imensa saudade, de muito carinho misturado com muita frustração por já não a ter. Algumas dessas lágrimas são por ela não ter conhecido o meu filho. E por o meu filho nunca a conhecer. Ela que iria reconhecer, cheia de orgulho, a menina que criou no miúdo que eu estou a criar!
Chamemos-lhe I. Os outros virão, a seu tempo.
Para ser o que sou hoje, tive na minha vida pessoas muito importantes que, não só me ensinaram muito do que sei hoje, como também me serviram (e servem!) de exemplo. E que tantas, mas tantas vezes me servem também de guia!
Eu não entendo alguns dos medos da clonagem! Jamais conseguirão fazer alguém igual a mim. Ou a qualquer um de nós! Pode ter o mesmo cabelo, os mesmos olhos, a boca, as mãos, mas... não vai viver o que nós já vivemos, nem sentir o que sentimos. O barulho do vento é igual, o som do oceano também, morangos sabem a morangos, mas ... e o som da voz da Avó!? O toque das mãos dela?! O tom de voz que usava para ralhar connosco?! E para nos mimar?! E as histórias que inventava para tomarmos o remédio?!
Pois é, também tinham que fazer um clone dela! Que também não seria igual!
É isso mesmo, vou falar da minha AVÓ!
Que não era minha avó de sangue, mas eu amava-a mais ainda por isso: ela escolheu-me para sua neta e eu escolhia para minha avó. Quando fizemos esta escolha não sabíamos que ia ser para a vida toda. Eu era a filha do Sr. Dr., que morava no "casarão" do lado, e ela era a mulher de um tipógrafo, que tinha uma "taberna" mesmo ao lado da casa do Sr. Dr.. E era preciso que alguém ficasse com a menina, de vez em quando. A avó do lado da mãe já tinha morrido, e a avó do lado do pai, tinha na altura, 90 anos. E claro, que as criadas da Senhora não estavam para "aturar" a menina. Sem perceber muito bem como (já não lhe posso perguntar) foi parar lá a casa.
É engraçado, porque me lembro da casa: rés do chão, onde era a taberna, um longo corredor que dava acesso ao pátio de trás e o 1º andar, que era a habitação. E a minha avó, com três filhos a crescer, tratava da "taberna", da casa, dos filhos e de mim! Sim, porque o marido estava a trabalhar o dia todo, só vinha à noite e gostava muito de beber. Esclareço já: tinha "bom vinho", ou seja, quando bebia não aborrecia ninguém. Só a minha avó é que ficava cheia de vergonha.
Sempre que os meus pais tinham que sair, eu ficava lá em casa. Havia uma cancela, no fim do corredor do 1º andar para a menina não cair pelas escadas.
E eu gostava muito dela, e gostava de lá ficar em casa.
E a menina cresceu, começou a perceber o mundo que a rodeava e o Pai achou que não era sítio para ter a menina. Afinal era uma taberna e ela era filha do Sr. Dr.. Não que isso lhe importasse muito, a história da "separação das classes" provocava-lhe grandes acessos de fúria! Eu tive o privilégio de assistir a alguns! Talvez por esta sua faceta, o Sr. Dr. decidiu que aquela senhora era a ideal para continuar a tomar conta da menina, sempre que fosse preciso.
Abençoada decisão do meu pai!
E vamos ficar por aqui. É que enquanto estive a escrever, na minha cara rolaram sem parar, umas lágrimas enormes, gordas, que me caiem em cima do teclado, enevoam-me a visão e me atrapalham. São lágrimas de imensa saudade, de muito carinho misturado com muita frustração por já não a ter. Algumas dessas lágrimas são por ela não ter conhecido o meu filho. E por o meu filho nunca a conhecer. Ela que iria reconhecer, cheia de orgulho, a menina que criou no miúdo que eu estou a criar!
Chamemos-lhe I. Os outros virão, a seu tempo.
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