quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Olfacto, esse terrível sentido

Há uns dias atrás, sem querer, acabei no campo. Sim, campo... árvores, terra, ar livre... Tinha planeada uma tarde com folhas de excel à frente e uma reunião. Reunião cancelada, restavam as folhas de excel. Uma fantástica tarde de sol, sem frio, após um belo "repasto" bem regado e ainda por cima sem ter que conduzir: ó que maravilha! Convite aceite! 'Bora lá! Excel adiado!

A meio da viagem, abre-se uma janela e entra no carro um cheiro delicioso de eucalipto, pinheiro, urze, giestas, folhas, ervas, terra... aquela mistura de cheiros impossível de descrever, mas que nos fica na memória e que nos traz memórias. Chegados ao destino, o cheiro mantém-se, entra nos pulmões, entranha-se nos poros...

Os cheiros, a vista, o sol, o calor que anuncia os dias de primavera, trazem-me à memória os tempos de miúda, passados nas quintas do meu pai. Os dias da matança do porco, os dias da vindima, da poda, os fins de tarde da ordenha... Na viagem de regresso e quando voltei às folhas de Excel, fartei-me de "viajar"!
Voltei à matança do porco, às conversas das caseiras que insistiam que o me fazia falta era comer o caldo de cozer as carnes e o sangue, que dava "sustança": "- Tão franzina esta menina! Precisa de a mandar para cá, Sr. Dr.! Este caldo e os ares, sai daqui outra, cheiinha, coradinha..." E eu comia o caldo de muito bom grado. Era bom!

De volta às tardes na Quinta da Forca, cá em baixo, na casa do forno, com a broa a acabar de sair, recheada com sardinha. O lanche melhorado dos trabalhadores, quando o meu pai lá ia! Ai, aquela broa: aquele pedaço debaixo da sardinha, quente, gorduroso, a desfazer-se na boca, ensopado com o sabor da sardinha... a broa de chouriço... até a broa simples, sem nada, digna da mesa de um rei! Muita broa quente comi eu: "- Deixe a menina comer, é o que ela precisa! Olhe, se não jantar, "quem não come por ter comido, não há mal de perigo"! Coma menina, faz-lhe bem, p'ra encher esses ossinhos..." Ah, e eu comia!

Aquela mistura de cheiros, a terra, fizeram-me regressar à ordenha, aos finais de tarde onde eu escapava aos olhos do meu pai, corria atrás do caseiro e ia beber o leite... não num copo, assim não tinha piada! O que eu gostava mesmo era de meter a cabeça debaixo da vaca, esperar que o caseiro apertasse as tetas da vaca e... directo para a minha boca! Sempre às escondidas do meu pai: (então da minha mãe nem se fala, tal era o pânico de eu levar um coice da vaca) "- Ai, Sr. Dr., a menina  é só olhos e cabelo... deixe lá, "o que não mata engorda!" Pois é, não existe leite melhor!

É, tenho maus hábitos! Almoços do fim da vindima, com os leitões a saírem do forno, a cabidela feita a preceito, as mesas corridas com todos os trabalhadores... A cabidela! Ninguém a fazia tão bem como o Victor, o caseiro de S. Lourenço. Qual batata frita! Era mesmo com batata cozida e salada. E vinho claro, para os adultos. Eu ficava-me pelo mosto, ainda a ser pisado pelo pessoal: "- Dê um copo à menina, Sr. Dr.... olhe que é melhor que os xaropes da farmácia! Tão branquinha, coitadinha... isto é que lhe faz falta!" E o meu pai dava. Eu gostava e ele tinha orgulho de eu gostar.

Fica outro tanto por contar: a lama, a cara mascarrada de uvas, as mãos sujas de terra, o cabelo ainda mais espetado do pó das correrias, o barro colado na roupa e nos braços, as pernas cheia de nódoas negras, arranhões e esfoladelas (tenho orgulhosas cicatrizes das minhas brincadeiras), os sonos feito no banco ao lado da lareira, na Quinta do Ribeirinho, as fabulosas tartes de chila da D. Maria Teresa...
De nada serviram os cuidados e as comidas das caseiras. Nem o leite puro, nem o mosto... Continuei franzina, magrinha, só olhos e cabelo, branquinha, mas com um apetite que só visto! Sim, sou "menina da cidade" mas com um pézinho no campo e com muita pena pelo meu filho não crescer com tudo isto.

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