Dizem-me sempre o mesmo: "- Mas ela está com óptimo aspecto! Nem parece que tem 80 anos... olhando para ela ninguém diria que está doente!"
E eu concordo e acrescento que estás com óptimo aspecto, aliás estás muito melhor do que antes de adoeceres. Desapareceu o teu ar de sofrimento, de inquietude, de desconforto, de insatisfação... nunca estavas satisfeita com nada! A tua vida era um drama, tudo te metia confusão, tudo te metia medo, nunca estavas satisfeita com o que tinhas. Por mais que tivesses querias sempre mais. Nunca estavas bem num sítio, querias sempre estar onde não estavas. Irritava-te a capacidade que os outros tinham de relaxar, de acalmar: tinhas que estar sempre preocupada. O tempo, o nevoeiro, as incontáveis obras desnecessárias que fizeste nas tuas casas, o dinheiro, e a tua saúde...principalmente a tua saúde!
O AVC "varreu" tudo da tua cabeça: as dores imaginárias, as doenças inventadas, os medos, as fobias, a insatisfação, o sofrimento que tudo o que imaginavas te causava. Finalmente tens um ar relaxado: não te lembras das costas, do joelho, dos ouvidos, da cabeça, da empregada, das obras, do jardim, das casas, dos inquilinos, das lojas, do dinheiro.
Continuas uma excelente actriz: percebo quando não conheces as pessoas, que não sabes quem são, mas sorris como se as conhecesses. Não distingues o copo da água do frasco do perfume ou da bisnaga de creme: é tudo para beber! Não distingues o garfo da caneta: é tudo para a boca! Não distingues as bolachas das flores: é tudo para comer! Não reconheces o teu nome escrito num papel! Mas não perdeste a tua capacidade de ser actriz... mostras-te contente, agradada... com os outros, claro...comigo não!
Entro e fico à porta, à espreita... as auxiliares mimam-te, dão-te atenção e tu sorris, contente, satisfeita. Entro. Chego-me ao pé de ti, dou-te um beijo na testa, pego-te na mão e digo-te: - olá, mãezocas! Olhas fixamente para mim, reconheces-me a voz, reconheces a minha cara... e a tua expressão muda...
É aquela expressão que muito bem conheço. Aquela com que me recebias, no alto das escadas, à porta da cozinha e que tantas vezes me fez apetecer voltar para trás, pegar no carro e vir-me embora. Nunca to fiz, por respeito à memória do meu pai, mas disse-te várias vezes que o faria se não mudasses a expressão. E tu mudavas, porque temias que eu o fizesse...
Sabias bem que a "chantagem emocional" não resultava comigo, mas tentavas sempre. Chamavas-me dura, seca, acusavas-me de não te ligar, de não te dar atenção, de não te abraçar. Acusavas-me de ter dado mimos e carinhos ao pai, de me abraçar a ele, de lhe dar beijos, de lhe morder as orelhas, de adormecer agarrada ao pescoço dele, e não te fazer nada disso... vinte e muitos anos depois de ele ter morrido, os ciúmes ainda continuavam...
Eu sei que a tua expressão era a derradeira tentativa para que eu tivesse "pena" de ti e que, com isso, te tratasse como o tratava. Querias que olhasse para ti, "vitima", "pobre coitadinha", "desgraçadinha", com ar de "quem vai morrer amanhã" e que te consolasse das dores e angústias imaginárias... Nunca percebeste que o que fazia ao pai era porque o meu coração mandava, que nada tinha a ver com "pena", que ele nunca me pediu nada, nem nunca pediria. Ele nunca se fez de "vitima", "pobre coitado" ou "desgraçadinho", mesmo sabendo que podia mesmo "morrer amanhã"!
Mas olha, não precisas de fazer essa expressão agora! Tens tudo o que ele teve: mimos, carinhos, beijos, abraços, cuidados extremos...não porque os pedes, mas porque precisas, não por pena, mas porque o meu coração manda...