Vim de lá arrasada. Cansada, esgotada e triste. Porque ela está aqui, mas não está aqui. Vive longe, numa época que já passou, num tempo que já não é o meu... nem o dela. Não a senti longe de mim, pelo contrário: não me lembro de ela ter estado tão próxima, de ser tão fácil comunicar com ela, de a entender como se, de repente, ela fosse um livro aberto.
Hora e meia onde tive que reconstruir a sua imagem, onde a obriguei a revisitar o passado de uma forma tão dolorosa que, a cada imagem que lhe era mostrada, as lágrimas lhe saltavam dos olhos e todo o seu corpo se encolhia perante o poder avassalador dos afectos, das emoções. Parecia que estava tudo a acontecer, ali e agora, como se não tivessem passado muitos anos.
Ao ver a letra do meu pai, nas costas de uma fotografia, chorou muito, mas não me reconheceu no bebé que estava nos seus braços quando virei a fotografia... eu só "existo" adulta, mulher, elo de ligação privilegiado com um mundo que ela desconhece, que não se lembra. Olha-me como se eu pudesse devolver-lhe a vida que se apagou. Exige de mim as memórias que perdeu. Obriga-me a passear no passado comum, tantas vezes feito de mágoas e tristezas, cheio de desencontros entre as duas. Força-me a ser mulher, mais uma vez... Volta, de novo, a não me deixar ser criança... Quer-me adulta, responsável... Eu, enquanto menina, enquanto filha para cuidar e tratar não estou presente, desapareci...
Entregou-me o papel mais ingrato de toda a minha vida: ser "mãe" dela! É a mim que se agarra desesperadamente quando não se consegue fazer entender, quando as suas limitações falam mais alto, quando não se reconhece nos cabelos brancos e nas rugas, é nos meus braços que procura o refugio de um mundo que a assusta e que não a entende. É a mim que faz longos discursos, incompreensíveis para todos, mas onde eu sinto as preocupações, as angústias, quase como se a estivesse a ouvir falar. É para mim que olha porque sabe que a entendo, que ouço no meio do mamamamamama, as perguntas e lhe dou as respostas.
Eu assumi o papel que ela me deu. Eu aceitei-o. Quase como se soubesse que isto estava à minha espera. Faço-o sem esforço. Saí-me de uma forma natural, quase sem pensar, as estratégias que monto, os planos que traço para a levar mais longe, para lhe devolver um pouco do mundo que perdeu. Dou-lhe tudo o que tenho, tudo o que sei, devolvo-lhe tudo o que ela já me deu a mim, mas que não se recorda. Entrego-lhe tudo o que posso e o que não posso.
Por ela, obrigo-me a adiar o luto de a ter "perdido", mesmo sabendo que já a "perdi" e que nunca mais a terei de volta. Devo-lhe a minha vida e não faria sentido que não lutasse por ela, quando eu sou uma lutadora. Luto por ela como luto por tudo o quero: com todas as armas que tenho, com tudo aquilo que eu sou, com tudo o que tenho de bom e de mau.
Não sei ser de outra forma, não me sei dar pela metade nem aos poucos. Quem me tem, tem-me sempre inteira, sem medos, disposta a enfrentar tudo e todos.